Quando a sentença condenatória é contrária à evidência dos autos, é comum o indeferimento do pleito ao argumento de que há mera rediscussão e/ou reexame de matéria já decidida em sede de recurso de apelação.
A revisão criminal, ação penal de natureza constitutiva e sui generis, é o meio adequado para combater sentenças condenatórias transitadas em julgado quando a decisão estiver contaminada por erro judiciário ou injustiça.
As hipóteses, por sua vez, estão previstas no Código de Processo Penal:
Art. 621. A revisão dos processos findos será admitida: I – quando a sentença condenatória for contrária ao texto expresso da lei penal ou à evidência dos autos; II – quando a sentença condenatória se fundar em depoimentos, exames ou documentos comprovadamente falsos; III – quando, após a sentença, se descobrirem novas provas de inocência do condenado ou de circunstância que determine ou autorize diminuição especial da pena.
Porém, quando a revisão criminal é ajuizada com fundamento no art. 621, I, in fine, do CPP, ou seja, quando a sentença condenatória é contrária à evidência dos autos, é comum o indeferimento do pleito ao argumento de que há mera rediscussão e/ou reexame de matéria já decidida em sede de recurso de apelação.
Então, por qual razão a norma acima está prevista na legislação pátria?
A sentença contrária à evidência dos autos é aquela “que não tem nenhum respaldo nos elementos probatórios, proferida de forma totalmente divorciada do contexto, em sentido contrário daquele que emerge do processo. […]” (Rogério Sanches Cunha, Ronaldo Batista Pinto. Código de processo penal e lei de execução penal comentados – artigo por artigo. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 1540).
Mas, para se saber se o decisum foi contrário à evidência dos autos há que reexaminar a prova produzida e se a sentença está de acordo com o conjunto probatório formado na ação penal, de modo que o fundamento de que é impossível o reexame das provas é inadequado.
Ao lecionar acerca da questão, discorreu Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto:
“[…] a má interpretação da prova não ensejará a revisão (que não se presta como uma nova apelação), mas somente a interpretação que não encontre apoio, de forma clara e evidente, em nenhum elemento de convicção existente nos autos. Não se aplaude, assim, a jurisprudência que nega a possibilidade de nova avaliação das provas na revisão criminal (RT 769/644, 764/542, 747/649), afinal, para se apurar se a condenação foi contrária à evidência dos autos, necessariamente se deverá, antes, analisar a prova produzida no processo em cotejo com o decreto condenatório. Em suma: a nova análise da prova é mesmo necessária, para se apurar da sua adequação – ou não – à sentença condenatória” (Código de processo penal e lei de execução penal comentados – artigo por artigo. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 1540-1541).
É o que se extrai da fundamentação empregada no acórdão proferido nos autos da Revisão Criminal n. 0069247-83.2014.8.26.0000, do 5º Grupo de Direito Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:
É que, dispondo o art. 621, I, do CPP, sobre o cabimento de revisão criminal (em processos findos) “quando a sentença (ou acórdão) foi contrária ao texto expresso da lei penal ou à evidência dos autos”, parece induvidoso que sem o exame das provas – vale dizer, as da própria ação penal que se quer rever – não é possível saber se a decisão foi ou não contrária a essa evidência, expressão que pode ser interpretada como decorrência de uma apreciação específica da prova, no dizer de Borges da Rosa: a evidência dos autos de que fala o citado dispositivo legal “é a clareza que se manifesta no conjunto dos autos, resultante do exame ou apreciação das suas diversas peças” (“Processo Penal Brasileiro, 1942, IV/66”). […]
E ainda segundo Frederico Marques, tal evidência se baseia no exame em conjunto das provas, recomendando seu exame e confronto, análise e conjugação. A condenação contrária à evidência, ensina o brilhante processualista, “é revista e rescindida, mediante reexame do que se continha no processo onde a sentença errônea ou iníqua foi proferida. O juízo de revisão funciona, aí, quase como o juízo de apelação, pois que o julgamento se processará sem necessidade de novas provas que demonstram o error in judicando” (ob. cit. p. 349).
Decisão que se encaixa no dispositivo em referência é a que faz errada ou errônea apreciação das questiones facit retratadas no processo, sendo preciso então, para afirmarse se tal ocorreu, ou não, o reexame dos mesmos elementos de convicção.
Observa Fernando da Costa Tourinho Filho que “se porventura o pedido revisional é formulado sob a alegação de que a sentença condenatória afrontou a evidência dos autos, nenhum documento será necessário, salvo os autos originais ou o seu translado” (“Processo Penal”, 5ª ed. 4/458). Donde a conclusão de que a mesma prova que serviu de base à condenação deve ser reapreciada ou reexaminada no âmbito da revisão. […]
Muitas e muitas revisões têm sido deferidas neste e em outros tribunais, absolvendo-se réus condenados em decisão anterior, exatamente porque nova apreciação da prova, a existente nos autos da ação penal, sem nenhum acréscimo, autorizava tal conclusão favorável. Por isso que não se pode referendar data vênia, o entendimento de que não se presta a revisão criminal ao simples reexame da prova. Não há como saber se a condenação contrariou a evidência dos autos – art. 621, I, do CPP – sem esse reexame, cotejando-se depoimentos testemunhais, valorando-se eventuais perícias, analisando-se reconhecimentos pessoais ou fotográficos, apreciando-se o valor de negativa judicial por parte do acusado ou a validade da confissão policial, etc. Também, e talvez com destaque, verificando-se os fundamentos da condenação encontram mesmo respaldo no processo, sabido que o erro é próprio da natureza humana, não se podendo tolher de imediato a possibilidade de sua eventual reparação. Entendimento contrário não explicaria o deferimento das revisões: Julgando-a procedente, “o Tribunal poderá alterar a classificação da infração, absolver o réu, modificar a pena ou anular o processo” (art. 626 do CPP). […]
Já decidiu a Suprema Corte somente há decisão contrária à evidência dos autos quando esta não tem fundamento em nenhuma prova colhida no processo (RTJ 85/278), assertiva que vem sendo ratificada em julgamentos revisionais. Mas se não houver nenhuma prova nos autos da ação penal não se pode conceber decisão condenatória, pela própria lógica, mesmo porque dispõe o art. 386 do CPP que o juiz absolverá o réu desde que reconheça “não existir prova suficiente para a condenação” (n. VI).
Dir-se-á que essa “nenhuma prova” corresponde exatamente à segunda previsão do art. 621, I, do estatuto processual penal: será admitida a revisão dos processos findos quando a sentença condenatória for contrária “à evidência dos autos”. Mas, a contrário sensu, havendo alguma prova contra o réu não poderá o juiz da revisão interpretá-la livremente, dando destaque a outra (s) que milite(m) em benefício do condenado? Por que impedir o juiz da revisão de formar sua convicção “pela livre apreciação da prova” (art. 157 do CPP) se houver alguma ou algumas favoráveis ao réu? Impede-o o art.621, I, segunda parte (CPP), porque o alcance e a segurança da coisa julgada devem se sobrepor a uma nova verificação sobre a eventual injustiça da condenação?
Para Rogério Lauria Tucci pode a revisão objetivar “não só o julgamento errado (aquele em que o órgão jurisdicional aplica mal o direito), como também o injusto (em que há má ou distorcida apreciação dos fatos versados nos autos do processo findo)”, tratandose de “ação adequada ao reexame da causa penal finalizada com sentença condenatória, a fim deque, no interesse da Justiça, reparar-se um erro judiciário” (“Direitos e Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro, Saraiva, 1993, p. 457).
Pode o erro resultar da falsa percepção pelo juiz; da inexata coleta das provas; do errôneo sopesamento dos elementos inseridos nos autos da ação penal, notadamente o erro de raciocínio do julgador, sendo impressionante a relação de casos de erros judiciários apresentados pelos tratadistas do assunto, dentre os quais João Martins de Oliveira (“Revisão Criminal, Sugestões Literárias”, ed.1967, pp. 37-64). E parece não haver dúvida que havendo base para a absolvição, em sede de revisão criminal, a decisão condenatória que se revê terá o significado de erro judiciário; de direito, “quando expressa um falso juízo de valor sobre a norma”, ou de fato, “quando expressa um falso juízo de valor em torno da prova” (Fabio Calderón Botero, “Casacion Y Revision en materia penal”, Bogotá, Temis, 1973, p. 13). […]
Não se pode delimitar o âmbito de apreciação da prova pelo juiz da revisão, verdadeira rescisória penal no entender de Frederico Marques, que observa: “a aplicação do art. 621 do CPP deve ser a mais ampla, possível, não importando que, com a revisão, a coisa julgada muito se enfraqueça” (ob. cit.P. 347). […]
A aplicação dos preceitos sobre a revisão criminal deve ser feita com bastante amplitude, vez que não se pode admitir, no Estado de Direito, que o erro judiciário possa perpetrar-se em prejuízo dos direitos e garantias individuais (TJSP. Revisão criminal n. 0069247-83.2014.8.26.0000, julgada em 20/11/2016. Relator: Des. Carlos Bueno).
Não poderia ser diferente, especialmente sob o prisma do art. 621, I, do CPP, in fine, porque “caso inadmissível fosse o reexame probatório, a revisão criminal com fundamento no citado permissivo legal ficaria inviabilizada […]” (STF. HC n. 123.247, julgado em 2/8/2016. Relator: Min. Marco Aurélio).
Sobre o assunto, já decidiu o Supremo Tribunal Federal:
HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. REVISÃO CRIMINAL. CABIMENTO. HIPÓTESES. INCISO I DO ARTIGO 621 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. SENTENÇA CONTRA A EVIDÊNCIA DOS AUTOS. FRAGILIDADE EVIDENTE DO CONJUNTO PROBATÓRIO. IMUTABILIDADE DAS DECISÕES JUDICIAIS. PRIMAZIA DO DIREITO À PRESUNÇÃO DE NÃO-CULPABILIDADE. 1. A revisão criminal retrata o compromisso do nosso Direito Processual Penal com a verdade material das decisões judiciais e permite ao Poder Judiciário reparar erros ou insuficiência cognitiva de seus julgados. 2. Em matéria penal, a densificação do valor constitucional do justo real é o direito à presunção de não-culpabilidade (inciso LVII do art. 5º da CF). É dizer: que dispensa qualquer demonstração ou elemento de prova é a não-culpabilidade (que se presume). O seu oposto (a culpabilidade) é que demanda prova, e prova inequívoca de protagonização do fato criminoso. 3. O polêmico fraseado “contra a evidência dos autos” (inciso I do artigo 621 do CPP) é de ser interpretado à luz do conteúdo e alcance do Direito Subjetivo à presunção de não-culpabilidade, serviente que é (tal direito) dos protovalores constitucionais da liberdade e da justiça real. 4. São contra a evidência dos autos tanto o julgamento condenatório que ignora a prova cabal de inocência quanto o que se louva em provas insuficientes ou imprecisas ou contraditórias para atestar a culpabilidade do sujeito que se ache no pólo passivo da relação processual penal. Tal interpretação homenageia a Constituição, com o que se exalta o valor da liberdade e se faz justiça material, ou, pelo menos, não se perpetra a injustiça de condenar alguém em cima de provas que tenham na esqualidez o seu real traço distintivo. 5. Ordem concedida (STF. HC n. 92.435, julgado em 25/3/2008. Relator: Min. Carlos Brito).
RECURSO ESPECIAL – MOLDURA FÁTICA. Ante a natureza extraordinária do recurso especial, e não ordinária, o julgamento ocorre a partir das premissas fáticas do acórdão impugnado. REVISÃO CRIMINAL – CONDENAÇÃO CONTRÁRIA À EVIDÊNCIA DOS AUTOS – REEXAME DE PROVAS – ADMISSIBILIDADE. Tratando-se de revisão criminal com fundamento no artigo 621, inciso I, do Código de Processo Penal, mostra-se admissível o reexame da prova. DELAÇÃO – CONDENAÇÃO – INSUFICIÊNCIA. A delação do corréu, por si só, não é fundamento para a condenação, especialmente quando não confirmada em Juízo. ACUSADO – RECONHECIMENTO – VÍTIMA – CONFIRMAÇÃO EM JUÍZO – AUSÊNCIA – CONDENAÇÃO. O reconhecimento do réu pela vítima em sede policial é neutro, quando não confirmado em Juízo (STF. HC n. 123.247, julgado em 2/8/2016. Relator: Min. Marco Aurélio).
Assim, a decisão que indefere ou julga improcedente o pleito revisional sob o argumento de que é impossível o reexame das provas fulmina os princípios constitucionais do devido processo legal e da não culpabilidade (art. 5º, LIV e LVII, da CF/1988).